A Função inferior nos contos de fadas
Por: Hellen Reis Mourão
Na
obra Tipos Psicológicos, Carl Jung nos forneceu um sistema de orientação do ego
que se baseia em sua relação com o mundo exterior e interior por meio das
funções psíquicas (sensação, intuição, pensamento e sentimento) e das atitudes
(introvertida e extrovertida).
As
funções psíquicas foram divididas em dois grupos: racionais (pensamento e
sentimento) e irracionais (sensação e intuição). As funções racionais, Jung classificou
como julgativas e as irracionais funções apreciativas.
Todos
nós em nosso desenvolvimento psíquico acabamos por desenvolver uma função, que
passa a ser então, usada com maior facilidade pelo ego em seu manejo com o
mundo. A essa função Jung deu o nome de função principal.
Mas
esse desenvolvimento da função superior se da à custa da repressão da função
inferior, ou seja, aquela que é oposta à superior. Assim ocorre como todos nós,
isso faz parte do nosso desenvolvimento como seres humanos. No entanto, em
determinado momento da vida devemos olhar para ela e nos debruçar sobre qual o
ensinamento ela tem para nos trazer.
Na
formação da personalidade humana existe uma imensa gama de possibilidades de desenvolvimento,
mas em geral desenvolvemos e formamos aquelas possibilidades que mais se
adaptam ao meio ambiente. É uma forma arcaica de sobrevivência.
O
homem é um ser gregário e que precisa se sentir pertencente e aceito.
Por
exemplo, alguém que possui uma boa inteligência e que vive em um lar onde o
racional e o estudo são valorizados irá desenvolver ainda mais seu intelecto. E
mesmo que essa não seja sua tendência natural, irá desenvolver o intelecto para
estar em consonância com esse ambiente. No entanto, a função oposta, o
sentimento, ficará indiferenciada e arcaica. Essa pessoa excluirá as tendências
sentimentais de suas escolhas.
Sobre
a problemática da função inferior falei com mais detalhes em um texto anterior.
Aqui,
nesse texto, quero comentar como a função inferior aparece nos contos de fadas
e como os mesmos mostram caminhos para a aceitação e solução dessa parte da
personalidade que fica encoberta pelo medo.
Alguns
contos de fadas como As três plumas dos Grimm e a Czarina Virgem, o herói é uma
figura desajeitada, é o filho mais jovem e desprezado pelo pai e irmãos.
Esses
heróis desajeitados e inadaptados correspondem à função psíquica menos
desenvolvida, ou seja, a inferior.
Outros
contos onde o herói parece não estar adaptado a realidade do local, ou que não faz
parte da corte e é alguém do povo e pobre, também mostram de forma menos clara
a função inferior.
No
conto de fadas Cinderela, também vemos a heroína como um símbolo da função
inferior. A madrasta representa a função superior já desgastada e em mau
funcionamento e as duas irmãs, como funções auxiliares da consciência, já não
têm força para auxiliar o ego.
A
estrutura então que se forma no conto é a seguinte: dois filhos são inteligentes
e amados representando o fundamento básico para a construção das duas funções
auxiliares no ser humano — e o filho mais novo, ou enteado, seria o Tolo representando
a base da construção da função inferior. Contudo o Tolo não é somente isso, ele
é também o herói, e toda a história está centrada nele (Von Franz, 2005).
O
herói ou a heroína nessa estrutura é o mais novo(a) ou mais fraco(a), sendo
sempre desprezado.
O
fato de serem heróis significa que a função inferior desprezada é capaz de
resolver problemas que a consciência não dá mais conta, liberando energia e um
novo valor para a consciência do ego.
Em
termos práticos essa é aquela situação, onde ficamos paralisados e não vemos
solução para o nosso problema e tudo o que fazemos conscientemente dá errado. Os
meios costumeiros e normais e agir não funcionam mais e nos sentimos impotentes
e devemos lançar mão de uma atitude inusitada e estranha. É aquele momento em
que fazemos justamente aquilo que dissemos que nunca iríamos fazer.
Temos
que solucionar um problema com o nosso lado mais fraco e a vida acaba exigindo
de nós uma nova atitude e forma de viver.
Um
intuitivo, que possui dificuldade em lidar com o lado prático da vida e que
vive no mundo das possibilidades, terá que olhar para o aqui e agora e assumir
compromissos com a dura realidade.
Os
contos de fadas podem então nos mostrar como transformar essa parte mais fraca,
inadaptada e desprezada em herói ou heroína.
Geralmente
os dois irmãos mais amados e mais hábeis não assumem a tarefa ou não conseguem
realizá-la de forma consistente. Isso significa que quando precisamos
desenvolver nossa função inferior as funções auxiliares só são capazes de
alcançar o simples, trivial e habitual. Elas não são capazes de trazer o
verdadeiro valor e o extraordinário.
Para
isso precisamos ousar, transgredir, encontrar o inusitado em nossas vidas.
É
importante também citar que alguns contos de fadas com essa estrutura deixam em
aberto qual das quatro funções representa o herói ou a heroína e qual das atitudes
vemos ali, se extrovertida ou introvertida. Isso significa que se trata de uma
fôrma que será preenchida com a vida humana.
Cinderela
por exemplo, se mantém introvertida, mas quando vai ao baile possui características
extrovertidas, não deixando e forma clara qual a sua atitude mais habitual.
O
conto então só documenta a questão fundamental e essencial do desenvolvimento
da função inferior.
Mas
isso não é uma regra, alguns mostram de forma mais clara qual é a função
representada pelo herói.
O
que é mais importante compreender então, é que o conto de fadas, traz uma infinita
escala de possibilidades e vem sempre dizer algo ao homem, tocando profundamente
em sua alma.
Conhecer
o seu conto favorito, ou aquele com que se identifica mais pode colocar em
movimento aquilo que ainda não pode se expressar.
Em
momentos em que nos encontramos na encruzilhada e que não conseguimos
solucionar problemas de forma costumeira, o conto pode nos auxiliar a trazer o
inusitado e o diferente. Ele nos ensina que o que estamos desprezando em nós é
justamente aquilo que precisamos para modificar a nossa vida.
Referências bibliográficas:
DIECKMANN,
H. Contos de fadas vividos. São
Paulo: Paulinas, 1986.
VON FRANZ, M. L.
A interpretação dos contos de fada. 5
ed. Paulus. São Paulo: 2005.
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