Héstia e o fogo sagrado da purificação

Por Hellen Reis Mourão




 
Héstia, para os gregos, Vesta para os romanos, é uma deusa que simboliza os laços familiares, o fogo da lareira e a cidade. De acordo com a mitologia, é filha de Cronos e Reia, sendo uma das doze divindades olímpicas, e irmã mais velha de Demeter, Hera, Zeus, Poseidon, Hades.
Conforme Junito Brandão em Mitologia Grega Vol.1, Héstia é a personificação da lareira colocada no centro do altar; depois, sucessivamente, da lareira localizada no meio da habitação, da lareira da cidade, da lareira da Grécia; da lareira como fogo central da terra; enfim, da lareira do universo. É, portanto, a lareira em sentido estritamente religioso.
Personificação da moradia estável, onde as pessoas se reuniam para orar e oferecer sacrifícios aos deuses. Sendo, então adorada como protetora das cidades, das famílias e das colônias.
Héstia era uma deusa casta. Rejeitou todas as investidas amorosas para se manter virgem, especialmente do belo Apolo e de Poseidon. Jurou virgindade perante seu irmão Zeus, e dele recebeu a honra de ser venerada em todos os lares e de ser incluída em todos os sacrifícios e permanecer em paz, em seu palácio, cercada do respeito de deuses e mortais.
Era representada como uma mulher jovem, com uma larga túnica e um véu sobre a cabeça e sobre os ombros. Havia imagens nas suas principais cidades, mas sua figura severa e simples não ofereceu muito material para os artistas.
Sendo a mais velha entre os irmãos, Héstia era a mais sábia e a mais honrada e, além disso, evitava completamente o poder.
Uma Deusa com um temperamento introvertido, cujo enfoque era a interioridade e a espiritualidade. Estava mais para um conceito abstrato, o conceito do fogo, da lareira, do que para uma personificação como os outros deuses. Bastava o fogo para representá-la. Isso explica o fato de ela não ser tomada como uma divindade pessoal.


Héstia era uma deusa “caseira”, simbolizava o lar, o centro sagrado. Este significado de centro, de interior, centralização, remete ao Self. A busca pelo Self, por si-mesmo, nada mais é que uma volta para casa, para o lar, para a sua intimidade mais intima.
Os antigos costumavam se reunir ao redor do fogo da lareira para contar histórias, em forma de círculo, simbolizando um mandala. Reunir-se em forma de círculo, ao redor de um centro contando contos nada mais é que um acesso ao inconsciente coletivo. Uma alegoria do processo de individuação.

Enquanto arquétipo, então, pode-se afirmar que Héstia representa a atenção para o centro espiritual da personalidade. Sendo, portanto, um arquétipo de centralização interior.
Portanto, se pode concluir que essa deusa é um arquétipo da interiorização necessária para a busca do si mesmo. Uma vez que o processo de individuação é um processo solitário. Não dá para individuarmos em meio a uma multidão, ou em um barzinho.
Portanto, Héstia vem nos mostrar, por meio do seu mito, que momentos de solitude são essenciais para esse desenvolvimento, para a busca de si.
Apesar de não ser uma deusa aventureira como Artemis e Atena, Héstia compartilha com essas duas deusas o título de virgem. Ou seja, ela não era vitimada pelas divindades masculinas ou pelos mortais. Isso lhe confere um caráter de inteireza, unicidade e integridade. Outra referência à totalidade. Estar inteiro em si mesmo, é a meta da individuação.
Outra característica importante dessa deusa é a sua ligação com o fogo.
Na antiga Roma, as Vestais (sacerdotisas da deusa Vesta, a Héstia romana), deveriam permanecer virgens durante todo o sacerdócio, que durava cerca de 30 anos. E durante o sacerdócio a principal atividade desenvolvida por elas, era a de manter o fogo sagrado aedes vestae, localizado ao lado da Casa das vestais e ao sudoeste do Fórum Romano, sempre aceso.

O fogo é o representante das paixões, das fortes emoções que queimam a pele, do desejo, da libido. O fogo queima, reduz às cinzas.
O fogo também é um elemento que opera no centro das coisas, pois é um elemento centrado em si mesmo. Além disso, ele está em constante evolução, pois não consegue ficar “parado”.
O elemento fogo é um dos mais frágeis dentre os quatro elementos. Basta observá-lo e perceber que tanto a água, quanto o ar e a terra podem eliminá-lo. Portanto vemos um paradoxo no fogo, além de ser extremamente destrutivo ele possui em si a fragilidade. É o único elemento que pode ser extinto.
Na Alquimia, o fogo estava ligado à operação conhecida como Calcinatio. Cujo processo químico consiste no intenso aquecimento de um sólido a fim de retirar dele toda a sua água.
Retirar toda a água, nada mais é que simplesmente evaporar as emoções que não servem mais. É uma renovação das emoções, uma vez que a água remete a emoções e toda água parada cria limo, atrai insetos e perde, portanto a sua pureza, contaminando a psique com o veneno da emoção na trabalhada.
Mas como um elemento que simboliza emoções fortes, destrutividade, libido e até sexualidade pode estar relacionado a uma deusa comedida, virgem e pura?
Parece incoerente, mas não é. Em Anatomia da psique, Edinger diz que o processo da Calcinatio vem da frustração dos desejos famintos e instintivos. Somente a provação do desejo frustrado pode levar ao desenvolvimento da personalidade.
E esse é o ensinamento que o arquétipo representado por Héstia vem nos trazer. Suportar a frustração do desejo (representado em Héstia pelo desejo sexual) leva a interiorização e ao centro de si mesmo. A queima dos afetos pelo fogo leva a uma desidentificação com eles.
A pureza de Héstia nos lembra que o fogo destrói tudo o que é impuro, sendo então, o arquétipo de purificação. A purificação pela compreensão, levando a conscientização dos instintos até então inconscientes, os levando então a sua forma mais espiritual, pela luz da verdade e da consciência.
Héstia, portanto, simboliza o significado da personalidade, conferindo um ponto de referência interior que permite ao indivíduo permanecer firme em meio da confusão, desordem e afobação do dia-a-dia.
Com Héstia entramos em contato com a luz e o calor interior nos sentindo aquecidos pelo fogo espiritual do si-mesmo.

Bibliografia:
EDINGER, E. – Anatomia da Psique, 10 ed. São Paulo: Cultrix, 1995
BRANDÃO, J. – Mitologia Grega Vol. 1, Petrópolis: Vozes, 1986
BOLEN, J. S. - As Deusas e a Mulher, São Paulo: Paulus, 1990

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