Branca de Neve e Rosa Vermelha
Por: Hellen Reis Mourão
Uma pobre viúva vivia isolada numa pequena
cabana. Em seu jardim havia duas roseiras: em uma florescia rosas brancas, e,
na outra, rosas vermelhas. A mulher tinha duas filhas que se pareciam com as
roseiras: uma chamava-se Branca de Neve; a outra Rosa Vermelha. As crianças
eram obedientes e trabalhadeiras. Branca de Neve era mais séria e mais meiga
que a irmã. Rosa Vermelha gostava de correr pelos campos; Branca de Neve
preferia ficar em casa ajudando a mãe. As duas crianças amavam-se muito e
quando saíam juntas, andavam de mãos dadas...
Elas passeavam sozinhas na floresta, colhendo
amoras. Os animais não lhes faziam mal nenhum e se aproximavam delas sem temor.
Nunca lhes acontecia mal algum. Se a noite as surpreendia na floresta elas se
deitavam na relva e dormiam.
Uma vez, passaram a noite na floresta e, quando a
aurora as despertou, viram uma linda criança, toda vestida de branco sentada ao
seu lado. A criança levantou-se, olhou com carinho para elas e desapareceu na
floresta. Então viram que tinham estado deitadas à beira de um precipício e
teriam caído nele se houvessem avançado mais dois passos na escuridão. Contaram
o fato à mãe que lhes disse ser provavelmente o anjo da guarda que vigia as
crianças.
As meninas mantinham a choupana da mãe bem limpa.
Durante o verão, era Rosa Vermelha que tratava dos arranjos da casa e no
inverno, era Branca de Neve. Á noite, quando a neve caía branquinha e macia,
Branca de Neve fechava os ferrolhos da porta.
À noite sentavam perto da lareira e enquanto a
mãe lia em voz alta num grande livro as mãozinhas das meninas fiavam; aos pés
delas, deitava-se um cordeirinho, e atrás, em cima do poleiro, uma pomba muito
branca dormia com a cabeça entre as asas.
Uma noite, quando estavam assim tranqüilamente,
ouviram bater à porta e a mãe mandou Rosa Vermelha abrir a porta, pois devia
ser alguém procurando abrigo.
Ao abrir a porta Rosa Vermelha viu um enorme urso
que meteu a grande cabeça através da abertura da porta. Ela soltou um grito e
correu para o quarto; o cordeirinho pôs-se a balir, a pomba a voar, e Branca de
Neve se escondeu atrás da cama da mãe.
-Não tenham medo, - falou o urso - Estou gelado
me deixem aquecer perto da lareira.
-Pobre animal, disse a mãe, - chega perto do fogo,
mas cuidado para não se queimar.
Então a mãe chamou as meninas. Elas voltaram e,
pouco a pouco, aproximaram-se o cordeirinho e a pomba, sem medo.
-Meninas, disse o urso, por favor, tirem a neve
que tenho nas costas!
As meninas pegaram a vassoura e limparam o seu
pelo; em seguida, o urso estendeu-se diante do fogo, grunhindo satisfeito. Não
demorou muito, ela puseram-se a brincar com ele. Puxavam o pelo com as mãos,
trepavam nas suas costas ou batiam nele com uma varinha de nogueira. Ele só
reclamou quando elas se excederam.
- Rosa Vermelha e Branca de Neve, ele disse –
tratem o pretendente como se deve!
Quando chegou a hora de dormir e as meninas foram
deitar-se, a mãe disse ao urso:
-Fique perto do fogo e você estará ao abrigo do
frio e do mau tempo.
Logo que amanheceu, as meninas abriram a porta ao
urso e ele se foi para a floresta, trotando sobre a neve. A partir desse dia,
ele voltou todas as noites, à mesma hora. Estendia-se diante do fogo e elas
brincavam com ele.
Chega a primavera e tudo se cobre de verde, então
o urso disse a Branca de Neve que tinha que ir embora e não voltaria durante o
verão, pois tinha que proteger seus tesouros dos maus anões. No inverno eles
permaneciam nas tocas; mas quando o sol derrete a neve eles saem e roubam tudo
o que podem; escondendo em suas cavernas. Ela ficou muito triste e quando abriu
a porta para o urso passar, ele esfolou a pele na lingüeta da fechadura, e
Branca de Neve viu o brilho de ouro, mas não teve certeza.
Algum tempo depois, a mãe mandou as meninas apanharem
gravetos na floresta. Lá chegando, viram uma árvore caída ao solo, e no tronco,
entre a relva, qualquer coisa se agitava, pulando de um lado para o outro. Ao
se aproximaram, viram um anão de rosto acinzentado, envelhecido e enrugado, com
uma barba branca muito comprida. A ponta da barba estava presa numa fenda da
árvore. Ao vê-lo Rosa Vermelha perguntou como sua barba ficara presa na árvore.
-Sua estúpida!- respondeu o anão; - eu quis
partir esta árvore para ter lenha miúda na cozinha, porque, com pedaços
grandes, o pouco que pomos nas panelas queima logo; nós não precisamos de tanta
comida como vocês, gente estúpida e glutona! Tinha introduzido a minha cunha no
tronco, mas a maldita madeira é muito lisa, a cunha saltou e a árvore fechou-se
tão depressa prendendo minha linda barba. Riem suas bobonas!
As meninas
fizeram muita força para livrar o homenzinho, mas não conseguiram desprender a
barba, então Rosa Vermelha disse que precisariam de ajuda.
-Suas
burras, - estrilou o anão, - Chamar mais gente? Não podem ter uma idéia melhor?
-Não fique
nervoso, - disse Branca de Neve. - Vou resolver isto.
Tirou do
bolso uma tesourinha e cortou a ponta da barba. Ao se ver livre, o anão agarrou
um saco cheio de ouro oculto nas raízes da árvore e, pôs às costas, sem
agradecer, saiu resmungando:
-Suas
brutas! Cortaram-me a ponta de minha barba! O diabo que vos recompense!
Passado
algum tempo, Branca de Neve e Rosa Vermelha foram pescar peixes para o jantar.
Quando chegaram perto do rio, viram uma espécie de gafanhoto grande saltitando
à beira d'água. Correram até lá e reconheceram o anão.
Rosa
Vermelha perguntou; - você não quer se jogar na água?
-Não sou
tão burro! - gritou o anão. – É esse maldito peixe que me arrasta para a água.
Para pescar o anão lançou a linha, mas o vento
enroscou sua barba na linha e, nesse momento, um grande peixe mordeu a isca do
anzol e suas forças não eram suficientes para mantê-lo fora da água, mesmo
agarrando-se aos ramos.
As meninas
seguraram o anão para desembaraçar sua barba, mas foi necessário usar mais uma
vez à tesourinha e cortar outro pedaço da barba. Ele gritou, zangado:
-Isso é
modo, suas patas chocas, de desfigurar a cara de uma pessoa? Já não bastava
cortarem minha barba da outra vez, agora cortaram a parte mais bonita!
Pegando um
saco de pérolas, escondido numa touceira ele sumiu atrás de uma pedra.
Pouco
tempo depois, a mãe mandou as meninas à cidade comprar linha, agulhas, cordões
e fitas. O caminho serpeava por uma planície de rochedos. Lá viram um grande
pássaro pairando no ar, que depois de descrever um círculo cada vez menor, foi
descendo, até cair sobre um rochedo não muito distante. No mesmo instante
ouviram um grito. Correram e viram com horror que a águia segurava nas garras o
seu velho conhecido, o anão, e se dispunha a carregá-lo pelos ares. As meninas
seguraram o anão com todas as forças, e puxa de cá e puxa de lá, por fim a
águia teve de largar a presa. Quando o anão voltou a si do susto, gritou-lhes
com voz esganiçada:
-Não podem
me tratar com mais cuidado? Estragaram o meu casaco! Suas, palermas!
Depois
pegou um saco cheio de pedras preciosas e deslizou para dentro da toca, entre
os rochedos. Sem se incomodar com sua ingratidão, elas foram pra cidade.
Ao
regressarem pela floresta, elas surpreenderam o anão, que tinha despejado o
saco de pedras preciosas num lugar limpinho. Os raios do sol caiam sobre as
pedras, fazendo-as brilhar tanto, que as meninas, deslumbradas, pararam para as
admirar.
-Que fazem
aí de boca aberta? - berrou o anão; seu rosto acinzentado estava vermelho de
raiva. Ia continuar xingando, quando se ouviu um grunhido surdo e, um enorme
urso negro saiu da floresta.
O anão deu
um pulo de medo, mas não teve tempo de alcançar um esconderijo: o urso
cortou-lhe o caminho. Então ele implorou:
-Querido
urso eu lhe darei todos os meus tesouros! Deixe eu viver! Você nem me sentirá
entre seus dentes. Pegue essas duas meninas gordinhas para o seu estômago!
O urso não
ouviu suas palavras; deu-lhe uma forte patada que o estendeu no chão.
As meninas
fugiram, mas o urso chamou os seus nomes e elas reconheceram a sua voz e
pararam. Quando o urso as alcançou, caiu a sua pele e, surgiu um formoso rapaz,
todo vestido de trajes dourados.
-Sou filho
de poderoso rei, - disse ele - este anão mau me condenou a vagar pela floresta
sob a forma um urso depois de ter roubado os meus tesouros e só com sua morte
eu poderia me libertar.
Branca de
Neve, pouco tempo depois, casou com o príncipe e Rosa Vermelha com seu irmão.
Partilharam, entre todos, os tesouros que o anão tinha acumulado na caverna e a
velha mãe viveu ainda muitos anos tranqüila e feliz junto de suas queridas
filhas e as duas roseiras que foram plantadas diante da janela dos seus
aposentos. E todos os anos elas continuaram a dar as mais lindas rosas brancas
e vermelhas.
O conto se inicia com uma mãe e suas duas filhas.
Há uma falta de energia masculina naquele sistema familiar. São 3 personagens
apenas, sendo que o número da completude e totalidade é o 4.
O quarto elemento compensatório virá com a figura
do urso primeiramente. Depois passamos a ter as duas meninas, o urso e o anão e
por fim as duas moças e os dois príncipes.
Elas vivem em estado de fusão, onde o estado
paradisíaco impera na relação entre elas, característico da infância. Algo
irreal e perfeito demais e que não é possível ser sustentado.
É bastante comum entre as mulheres de uma família
(até como forma de defesa), se unirem em uma causa comum e excluírem os homens.
Pai e irmãos podem ser deixados de lado, fazendo pouco deles e os tratando como
bebês e imbecis.
Isso acontece entre as meninas em uma determinada
idade antes da adolescência, onde elas se unem ao redor de seus interesses
mútuos, excluindo os meninos que também se reúnem em grupos de forma a proteger
sua masculinidade nascente.
Essas associações servem para reforçar o amor
próprio e o senso de identidade. Até certa idade é extremamente saudável para
poderem afirmar sua feminilidade perante si mesmas.
Em alguns povos tidos como primitivos os jovens
eram iniciados nas sociedades secretas dos homens e as garotas nas de mulheres.
Na Grécia havia um culto a deusa Artemis em
Brauron, que possuía a forma de uma ursa. Meninas entre 12 e 16 anos eram
consagradas em seu serviço. Durante esse período não tomavam banho, não se
cuidavam e se expressavam de forma grosseira; eram chamadas de “ursinhas” (Von
Franz, 2010).
Artemis é conhecida por ser uma deusa virgem, ou
seja, é aquela que é inteira em si mesma e não se deixa levar por
relacionamentos. Diferentemente de outras deusas como Demeter e Hera, por
exemplo, Artemis nunca foi subjugada ou perseguida por um homem. Sua inteireza
então beneficiava as meninas na busca de sua verdadeira personalidade e amor
próprio.
Atualmente em nossa sociedade, com a perda dessa
iniciação feminina, temos muitas mulheres com senso de valor próprio muito
baixo. Esses movimentos de empoderamento feminino vêm justamente compensar essa
perda de rito de iniciação, de forma a resgatar essa falta de ritos de
iniciação femininos. Esse movimento pode ser, por vezes, bastante exagerado; no
entanto, todo movimento compensatório é exagerado e desajeitado. Isso assim
ocorre para compensar o exagero da atitude anterior, mas com o tempo o
equilíbrio pode vir a ser restaurado.
Essas sociedades secretas antigas, tinham como
função proteger a personalidade em desenvolvimento das meninas, para que elas
não se lançassem na sexualidade e maternidade cedo demais.
Os contos de fadas trazem muito material do
inconsciente coletivo. Por essa razão, não é a toa que encontramos muitos
simbolismos pagãos em contos de fadas de origem ocidental. Esse conto, por
exemplo, é dos Grimm e de origem Alemã.
Na superfície podemos nos mostrar cristãos, mas nosso
substrato inconsciente é pagão e está lá a espera de ser notado e novamente
ouvido.
Com a repressão desse paganismo, perdemos muitos
ritos iniciáticos trouxemos grandes dificuldades para a expressão feminina,
pois no paganismo o feminino tem a possibilidade de se expressar de forma mais
exuberante, do que no cristianismo atual.
Por meio do estudo dos contos de fadas podemos
resgatar essa sabedoria perdida e esquecida para uma ampliação de consciência
coletiva.
Pois bem, barrar o princípio masculino nem sempre
é negativo, pois assim é possível desenvolver melhor a personalidade. Contudo,
isso não pode durar tempo demais e o conto mostra como essa transição e a
aceitação do masculino. Apesar da oposição autêntica entre os sexos, são essas
diferenças que causam atração e levam a alteridade e ampliação de consciência.
Como cita Von Franz (2010), o principio masculino
e o princípio feminino estão destinados a se completar e fecundar
reciprocamente.
Voltando ao conto, vemos que ele ilustra a
história de duas irmãs que são opostas uma a outra. Uma é claramente
extrovertida, a Rosa Vermelha que gostava de correr pelos campos, já Branca de
Neve que preferia ficar em casa ajudando a mãe, mostra aspectos de introversão.
Portanto, vemos os dois aspectos de manifestação
do feminino em harmonia.
As meninas representadas por cores trazem um
aspecto da Alquimia.
O Branco está associado à Albedo, que representa um
estado de brancura, de paz e beatitude. Após os tormentos da alma (Nigredo) se
alcança a paz. Nesses estado tudo flui com mais facilidade e a dor é menor. É o
símbolo do Éden, o paraíso eterno e da regressão da libido. Mas neste estado de
"brancura", não se vive, pois se trata de uma espécie de estado
ideal, abstrato.
O Vermelho está associado à Rubedo, que simboliza
a união do masculino e feminino. É o casamento do Sol com a Lua, do céu com a
terra, espírito e realidade. Observem que é Rosa Vermelha quem abre a porta
deixando o urso entrar.
O estado anterior de brancura é um estado ideal e
abstrato longe da realidade; é por isso, é necessário insuflar vida. O sangue
da vida deve entrar com a Rubedo. Só o sangue pode trazer vida e assim o complexo
autônomo possa ter expressão humana.
Além disso, o conto ilustra como uma
personalidade extremamente feminina pode ser positiva, mas também trazer
problemas. As meninas são extremamente identificadas com a mãe. Isso é benéfico
em termos de autoestima, mas é prejudicial ao processo de individuação, uma vez
que a filha projeta o Self em sua mãe, se tornando uma cópia dela e imitando
tudo o que ela faz, sem questionar.
O masculino quando se apresenta vem fazer esse
corte (como o corte do cabelo em Rapunzel) e encaminhar a mulher para sua
individuação e para quem ela tem que se tornar.
Como esse masculino ainda não é integrado, ele se
apresenta contaminado e em forma animal. É um complexo que ainda se encontra
não integrado na vida humana e o sangue, ou seja, a Rosa Vermelha lhe permite a
entrada na família para que possa encontrar a redenção.
A Deusa Artemis às vezes pode ser representada
como ursa. Entre os adeptos de Wotan existiam os berseks. Um bersek podia cair
em sono profundo, como que morto, durante uma batalha e nesse tempo um urso
aparecia e massacrava os inimigos e quando desaparecia o bersek acordava. Isso
significa que a alma desse homem se encarnava em um urso.
Simbolicamente simboliza a fúria. A Deusa Artemis
– assim como Wotan - era conhecida por sua fúria proverbial e não hesitava em
massacrar quem ousasse lhe enfrentar.
A fúria e a ira estão ligadas a cor vermelha da
paixão, que andam juntas.
O urso do conto simboliza, então uma fúria que
precisa ser integrada e transformada. É o masculino que falta naquela família. O
urso com sua força representa uma agressividade necessária.
O feminino possui a tendência oposta a ser
benevolente demais. É o aspecto Virgem Maria abnegada. No conto é o aspecto
puro de Branca de Neve.
Rosa Vermelha e Branca de Neve representam então
o feminino em sua expressão mais completa. As duas são pólos opostos do
arquétipo feminino, mas que juntas trazem a completude feminina. Esse aspecto
mais completo se manifesta ainda, apenas no inconsciente e o vemos nos contos e
mitos bem retratados.
No entanto, uma mulher sem o masculino, sem o
animus, e que é feminina demais, mais a vida tende a passar por cima dela. A
bondade extrema faz com que ela se deixe massacrar, matar e é despojada de sua
existência.
Esse tipo de mulher socorre a todos e nunca a ela
mesma. Ela pode ser a “tia solteirona” a quem todos correm pedindo ajuda.
Portanto, se copiar o homem é nocivo, é
igualmente ruim ser feminina demais. Pois assim a mulher não consegue enfrentar
a vida e ela passa por ela.
O conto então nos mostra o caminho para a
integração do masculino sem cair no clichê do lado oposto e assim assumir suas
qualidades negativas.
Mas como quase ninguém consegue acertar o alvo da
primeira vez, uma mulher muito passiva pode se tornar bastante agressiva por
compensação.
Esse aspecto encolerizado e mal humorado do
masculino é visto na figura do anão, que, ao contrário do urso, vive
encolerizado.
O urso possui uma atitude equilibrada com sua
raiva; ele mata somente quando necessário. Já o anão barbudo é inconveniente,
irritado, irritante e ladrão; ele é um aspecto do animus que precisa ser
superado.
Ele espelha o caráter irritante de um animus que
pode tomar uma mulher inteligente em muitos aspectos, e torná-la tola e
briguenta. Ela perde o senso de humor, se torna ingrata e sedenta de poder. Uma
verdadeira caricatura como o anão.
Conforme afirma Von Franz (2010), para a mulher
chegar ao animus positivo e ter uma boa relação com um homem ela deve passar por
essa fase intermediária.
Isso significa que ao passar a expressar esse
animus no exterior, a mulher que nunca o expressou, começa a fazer isso de
forma nada simpática. Isso ocorreu de forma coletiva com as primeiras mulheres
que lutaram pelo direito ao voto, por exemplo. O mesmo ocorre nos dias de hoje,
onde séculos de dominação do feminino não são mais tolerados. Vemos atitudes
hipermasculinas e agressivas em várias dessas reivindicações.
Os anões nos contos de fadas, em geral, são
bastante agradáveis, solícitos e positivos. Eles têm uma relação profunda com o
mundo feminino. Em Branca de Neve, um dos contos mais famosos do mundo, eles a auxiliam
em seu desenvolvimento.
Eles, em geral representam as intuições criadoras
e criativas, mas quando se apresentam negativos e irritadiços como nesse conto,
isso significa que se trata de uma parte não vivida da mulher e que precisa de
expressão. Sua vida criadora e criativa faz reivindicações para ter seu espaço na
vida humana.
Ela até pode ter um emprego onde ganhe
razoavelmente bem e até tenha status, mas isso não significa que seu potencial
criativo esteja em ação. E mesmo assim ela pode ser tomada por essa estranha
figura.
Há um excesso de energia criadora e criativa no
inconsciente e a mulher precisa buscar algo que seja uma atividade criativa
provinda de sua alma e não de fatores externos. Ela precisa reconhecer e
integrar as demandas do seu inconsciente.
Outro aspecto interessante desse conto é a
compaixão excessiva das meninas pelo anão insuportável.
É um dos aspectos do feminino esse excesso de
compaixão e instinto maternal. A piedade diante do ser abandonado, condenado ou
em desamparo quando em excesso pode levar a mulher à autodestruição psíquica. Por
essa razão, principalmente as mulheres precisam desenvolver a objetividade e
certo desprendimento e controlar esses instintos de piedade.
Isso pode se refletir em relacionamentos onde a
mulher tem um marido do tipo anão. E, por incrível que pareça, são relações muito
comuns. O home é um tipo sádico, neurótico e quando a mulher quer romper é
invadida pela sensação de piedade e não consegue abandonar alguém tão desamparado.
Ela projeta esse animus negativo no homem. Isso pode acontecer no caso de uma
mulher querer ser a mártir de um alcoólatra. Ela passa a vida desculpando seus
excessos, irritações e mau humor.
Essa piedade pode acometer os homens também, mas
os casos são em menor número.
Há um momento crucial do processo de individuação
da mulher em que ela deve libertar-se dessa piedade sem discernimento (Von
Franz, 2010).
Lembrando que no conto, o anão é um ladrão,
significando que ele se apossa dos tesouros de possibilidades criativas dessa
mulher e do lado positivo do animus. Nesse estado, ela pode ser uma vítima
literal de seu amante, que vai lhe roubar seu dinheiro, talento, energia vitalidade
e amor próprio.
Roubar é uma atitude que mostra que vai em busca
do que quer, mas de uma forma infantil, preguiçosa e imatura. A mulher pode
então, nesse caso, querer sair da solidão pelo caminho mais fácil e preguiçoso,
aceitando qualquer migalha de amor.
Ao negar sua piedade e dedicação a um homem desse
tipo, ela tem de enfrentar o seu problema e se esforçar para encontrar o que
realmente procura, o que exige um tremendo esforço; basta ver a narração do
mito de Eros e Psique, onde a heroína passa por provas desgastantes para
encontrar seu masculino positivo.
Um processo de iniciação feminino então é narrado
no conto. Na iniciação elas mergulham e encaram o problema e assim prendem a
barba do anão.
O tema da barba é comum nos contos de fadas. Os
Grimm nos deixaram contos como o Barba Azul, que representa o animus assassino;
além do conto O Rei Barba de Tordo, que mostra a transformação do animus; em O
Velho Rinkrank, onde a heroína prende a barba do demônio da montanha e escapa
dele.
A barba é o pelo que cresce ao redor da boca. Algo
bem típico do masculino. Elas simbolizam algo que cresce espontaneamente ao
redor da boca, simbolizando um verbalismo automático e nervoso que se apossa da
mulher e um sintoma bem neurótico de nossa sociedade atual
hiperintelectualizada. É uma torrente de pensamentos e palavras indiferenciados
e inconscientes.
A barba desse animus representa então o aspecto
verborrágico dele. Uma verborragia autônoma, sem sentido e arrogante.
Ao prender a barba do anão, a mulher se questiona
e não deixam que essa energia flua sem direcionamento. Ela usa, então, a razão para
questionar o que está dizendo e pensando. A questão central é se perguntar: “Eu
estou realmente pensando isso?”.
Assim, se questionando a mulher consegue aos
poucos para de sustentar raciocínios absurdos e começa a questionar o que
realmente quer exprimir.
Mas nos contos elas soltam o anão. E assim ele
continua prejudicando os outros até que o urso o mate. Algumas mulheres ao
invés de enfrentar esse animus negativo preferem se livrar dele.
No entanto, quando isso ocorre, elas precisam
usar de agressividade para a transformação. Uma energia extra teve de ser
usada.
No final o anão é substituído pelo irmão do urso,
que resulta em um casamento quaternário, ou seja, em mais um símbolo da totalidade.
A energia masculina foi transformada e alcançou um nível mais elevado.
Os contos de fadas de origem européia e que são
tão famosos no Ocidente, culminam em um casamento. Parece que ainda
necessitamos e ansiamos pelo equilíbrio da energia masculina e feminina.
O conto de fadas Branca de Neve e Rosa Vermelha
ilustra então, espíritos insuficientes desenvolvidos que caem em uma armadilha
intelectual falsa. Seja a mulher por meio de um animus não desenvolvido, ou de
um homem que não tem consciência de sua anima e caiu nas garras do animus dela
(vários contos como A Princesa Enfeitiçada relatam isso).
E assim, por meio desse conto, vemos como a
mulher pode desenvolver seu espírito criador e assim deixar de estar em um
papel secundário ao lado de homens criadores que roubam suas ideias.
Referência Bibliográfica:
VON FRANZ, M. L. A interpretação dos contos de fada. 5
ed. Paulus. São Paulo: 2005.
_________________ O feminino nos contos de fada. Vozes.
São Paulo: 2010.
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